Pratos recheados de assistencialismo, dramaticidade, hilaridade e
musicalidade compõem o cardápio do almoço na TV baiana. Com ingredientes
que perpassam a solidariedade, o ideal de justiça e a espetacularização
da notícia, os programas de pretensões populares - que alguns chamariam
de popularescos - têm dominado a televisão da Bahia, sob o louvor de um
público grandioso e a incredulidade de profissionais que atuam nas
universidades de jornalismo e variadas especialidades do Direito.
Desde que esses programas começaram a ganhar força no Estado,
principalmente com a estreia do Programa Na Mira (TV Aratu, afiliada do
SBT), em 2008, discussões sobre os limites das abordagens jornalísticas e
reiterações dos principios que regem os Direitos Humanos passaram a ser
confrontados.
Hoje, com três programas apenas no horário do almoço (Se Liga Bocão,
na Record Bahia; Brasil Urgente, na Band Bahia; e Na Mira, na TV Aratu),
tais discussões saem das telas de TV, das universidades e dos
reguladores judiciais, alcançando as ruas. Quais são os constrangimentos
causados pela violência e pela morte? Qual o poder e dever do
jornalismo? Qual a real obrigação do Estado?
Ruas - A dona de casa Rosimeire Barbosa Santos, 45
anos, moradora do bairro de Jardim Cruzeiro (Cidade Baixa), costuma
ligar sua TV na hora do almoço e assistir ao programa "Se Liga Bocão".
Entre um intervalo e outro gosta de dar uma espiada no Bahia Meio Dia,
na emissora afiliada da Rede Globo. "Sinto que Bocão tem uma tendência
policial, indo fundo nos problemas passados nos bairros. O outro tem uma
tendência mais social. Meu controle (remoto) passeia pelos dois
canais", relata sua experiência televisiva.
De forma crítica, a dona de casa avalia que há exageros na forma com a
notícia é exposta e apresentada nos programas da Record Bahia,
considerando exagerada a forma como repórteres abordam os presos, mesmo
desconhecendo as participações dos suspeitos nos crimes.
Em contrapartida, também pontua que é por meio desta programação que
os moradores de bairros mais pobres se identificam. "Infelizmente, já vi
vários conhecidos sendo presos nestes programas. É por meio deles que a
realidade destes bairros pode ser observada", relata.
Também posicionando-se como telespectadora dos programas populares, a
trabalhadora doméstica Alda Stella Rocha da Silva, 47, moradora do Vale
das Pedrinhas, procurou a Record Bahia e TV Aratu, com a esperança de
encontrar o pai, sumido desde o dia 30 de maio. "Minha procura segue por
todos os cantos da cidade. Esses programas são a minha esperança",
desabafa.
Telas - Os relatos das ruas inspiram Pablo Reis,
diretor do programa Na Mira. "Fazemos diagnósticos diários sobre os
contéudos apresentados e, a partir disto, apresentamos pautas
contundentes. Mais do que com situações, trabalhamos com temas",
explica.
Também formado em jornalismo, o diretor de TV não nega que o programa
já tenha cometido erros, principalmente em sua gênese. "Por termos sido
o primeiro a destacar a segurança pública como tema central, acabamos
nos ajustando com a experiência. Por exemplo, se alguém era preso por
suspeita de roubo, dizia-se que era ladrão. Hoje temos maior segurança
ao tratar destes assuntos", acrescenta.
Pablo revela que o programa já assinou Termos de Ajustamento de
Conduta (TAC), por meio de exigências do Ministério Público (MP), e está
mais consciente do seu papel, respeitando inclusive quando o suspeito
de um crime não quer aparecer. "Mas, há uma coisa que sempre digo ao
repórteres: Do mesmo jeito que os direitos de quem é entrevistado deve
ser respeitado, o do jornalista não deve ser esquecido. Eu acho que não
podemos nos censurar de perguntar", argumenta.
Em meio à entrevista a pergunta: - Se o problema da segurança pública
afeta a todos - independente de classe social - por que os personagens
centrais das histórias contadas são sempre pobres e moradores da
periferia? Será que é porque esse público desconhece os direitos de
permanecerem calados?
Contundente, o diretor afirma: "Não posso falar por outras emissoras,
mas quanto ao nosso trabalho afirmo que do Corredor da Vitória à
Periperi, todos são tratados da mesma forma. Quem afirma o contrário,
critica pelo que ouve falar, não pelo que é exibido", conclui.
Misérias - Os profissionais que pesquisam este tipo
de programação - tanto nas universidades, como nas associações de defesa
dos Direitos Humanos - não só discordam do diretor de TV, Pablo Reis,
como cobram da Justiça ações efetivas de combate a exploração da miséria
humana nos programas baianos.
Segundo o jornalista Pedro Caribé, diretor nacional do Intervozes
(associação civil sem fins lucrativos) e integrante do Conselho Estadual
de Comunicação, os direitos inviduais estão acima da liberdade de
expressão. "Não consigo ver uma função social. O público acaba gostando
destes programas porque são meios por onde se veem na sociedade do
espetáculo. Eles nunca aparecem como fontes técnicas, só como
protagonistas de tragédias", considera.
Para o ativista, o discurso de que tais programas combatem a
violência não é verdadeiro. "Do ponto de vista da análise do discurso,
eles incitam comportamentos violentos ao mostrar a ideia de um "sistema
bruto", onde o que importa entre o céu e a terra é o "na mira estar
entre eles", compara os jargões.
Outra fantasia apresentada por esses programas, segundo Caribé, é de
que estão mostrando a verdade, nua e crua. "A verdade é e pode ser
construída de diversas formas. Pelo que veiculam, a vida das pessoas
pouco importa, a não ser a audiência", completa.
Macabro - Conforme o diretor da Faculdade de
Comunicação da Bahia (Facom) e coordenador do Centro de Estudos em
Análise do Discurso e Mídia (Cepad), Giovandro Ferreira, pode-se dizer
que estes programas fazem jornalismo quando se leva em conta que
reportam as novas do dia (por isso a função do repórter), comumente
relacionados a casos de segurança. "Entretanto, uma coisa é informar e
outra coisa são as notícias que são divulgadas e o deserviço que
prestam", pondera.
Além disso, o pesquisador pontua que o ser humano se interessa pela
morte, motivo que centraliza a audiência desta programação, como também
se interessa pela origem da vida e pela vida após a morte. "O problema
não é abordar estes assuntos, mas sim a forma como se aborda", salienta.
Para Giovandro, as delegacias tornaram-se locais de espetáculo
midiático. "Há uma convergência de erros em torno dessa aberração vista:
a omissão dos poderes públicos e empresas privadas (financiadores)",
avalia.
Assim como o diretor da Facom, o jornalista Caribé acredita que há
uma total inoperância da Justiça na avaliação destes programas, já que
as imagens são feitas, em grande maioria, nas próprias delegacias. Para
ele, as portarias que acabam controlando o acesso da imprensa nestes
espaços, permitem que os delegados avaliem se vale ou não que os presos
sejam expostos na imprensa. "Eles nunca entrevistariam um "rico" sem a
intermediação de advogado. Do outro lado, os programas incitam que os
pobres, suspeitos de crimes, criem provas contra si mesmo", argumenta.
Diante de tantos "palpites" - das ruas, das telas e das universidades
- faltou o argumento do Ministério Publico do Estado sobre o assunto.
Procurada pela equipe de A TARDE, a assessoria da unidade não emitiu um
parecer sobre o assunto até o fechamento desta matéria.
Fonte: Henrique Mendes (Jornal A TARDE)
Nenhum comentário:
Postar um comentário